
Tenho por hábito, como apaixonado por cinema, rever filmes de todas as épocas. Algumas pessoas acham uma perda de tempo. “Para que ver um filme de novo se ele permanece imutável?”, podem se perguntar. “É muito melhor ver algo novo”. Bem, o interessante para mim é que os filmes mudam com o tempo. Os bons filmes, aqueles que me fazem pensar, têm o poder de mudar e revelar novas facetas, sempre refletindo o meu espírito de então. Detalhes que antes eram despercebidos passam a ter uma força assustadora. Personagens menores, antes coadjuvantes, mostram características novas. O mocinho, com sua racionalidade impassível e sua insistência em não cometer erros, perde um pouco da graça para o vilão, com sua história cheia de nuances e sua psicologia complexa, e ainda mais para o anti-herói (meu favorito) que reflete o homem comum, cheio de dúvidas, erros e acertos. Uma linha dentro de um diálogo de um filme, que a certa altura da vida não tinha tanta força, passa a ter uma carga poderosa em outras ocasiões. Portanto, bons filmes são sim mutáveis e revê-los é sim uma prática bastante saudável.
Outro dia tive a oportunidade de rever mais um. Um contemporâneo. Trata-se do Traffic (2000), de Steve Soderbergh, uma contundente abordagem sobre as drogas e o crime organizado que elas envolvem. Quem não conhece (acho que poucos por se tratar de uma obra relativamente recente), deveria ver. O filme aborda o assunto sob três diferentes óticas: a do czar do governo americano contra o tráfico (juiz- um tipo de secretário de justiça) cuja filha é uma viciada, a mulher de um traficante que tem o marido preso e se vê “obrigada” a assumir os negócios e um policial honesto mexicano (uma ilha em meio a um mar de corrupção) que vive dentro da hipocrisia de um sistema onde polícia e bandido dependem do tráfico e do seu dinheiro. Essas três abordagens se entrelaçam, com a participação de informantes, generais, assassinos de aluguel, políticos “marketeiros”, traficantes menores, policiais que se sentem pequenos e inúteis dentro de um esquema tão grande. O filme é realmente bom e conserva, dez anos depois, muito do seu frescor. Até porque o tema está mais vivo do que nunca (como se viu nos debates eleitorais recentes). Não é a toa que a obra ganhou 4 oscars (entre outros prêmios) inclusive o de melhor diretor, muito merecido para um sujeito do qual eu sou fã desde Sexo, Mentiras e Videotape (1989).
Mas alguém pode estar se perguntando: e o esporte do título desse texto? Bem, tem uma determinada cena desse filme, onde o policial honesto mexicano (estupendamente interpretado por Benicio Del Toro), solta uma frase certeira, de uma simplicidade cortante: “Os parques e praças deveriam estar iluminados para que as crianças possam praticar baseball, senão elas acabam sendo mulas (aviões) do tráfico”. Enquanto os governantes tentam estratégias mirabolantes para deter o envolvimento do jovem com o tráfico, o cara vem com essa. E é verdade. Não estou aqui dizendo que a prática regular e acompanhada de esportes sozinha seria 100% efetiva para evitar o contato das crianças e jovens com esse mundo. Mas, com certeza, abriria mais uma opção na vida de pessoas sem muitas escolhas. Uma opção onde os heróis (modelos) são atletas que lidam com a saúde, com o espírito de equipe, com a disciplina, com o comprometimento em relação a metas. E não sujeitos armados até os dentes, cujo trabalho é gerenciar a distribuição de um vício enquanto protege as costas do ataque de um rival.
Agora eu pergunto: Quantas quadras e piscinas públicas existem na sua cidade? Quantos habitantes existem para cada uma delas? Em que condições elas se encontram? Existe manutenção? Quantos projetos relacionados ao esporte, de órgãos públicos ou privados, existem na sua cidade ou bairro? Por que um país com quase 200 milhões de habitantes pratica, proporcionalmente, tão poucas modalidades esportivas (futebol magnânimo, seguido timidamente por alguns outros poucos)? Por que temos tão poucos números e estatísticas relacionadas ao esporte no Brasil (como o controverso censo esportivo de 2003)? Quantos potenciais atletas nós já perdemos por conta do nosso abismo social? A Copa e as Olimpíadas serão eventos estritamente turísticos, ou deixarão um legado para o esporte no país? Caso o objetivo seja deixar um legado, não estamos atrasados em nosso propósito? Por que a memória do esporte no Brasil é tão apagada (pergunte para qualquer jovem sobre quem foi Maria Esther Bueno, Éder Jofre ou João do Pulo)?
Não dá para terminar esse texto de outra forma: é por essas e outras, que essas e outras acontecem.
Voltaremos a tratar disso.